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Mensagens de Carinho

Lembro

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Eu lembro da cera espalhada no piso aos sábados, dos frisos umedecidos das janelas de basculantes com o cuidado ao polir os ferros. Eu lembro das laranjeiras apanhando da chuva que caía forte. Eu lembro do galo se derramar em canto durante a madrugada. Eu lembro dos pés de minha avó antes de morrer. Eu lembro quando a árvore mudava a cor das folhas, desfazendo a sua sombra aquecida. Eu lembro do chapéu de palha de meu avô atrás da porta. Eu lembro do silêncio de luto, o tempo de cada refeição na mesa, no tempo de um parente que inesperadamente chegava, Eu lembro do nascimento de meu irmão João Marcelo. Eu lembro do dia de sua partida como o tempo de árvore de um pássaro a outro. Eu lembro da ferrugem na bicicleta, a tosse afobada do primeiro cigarro de meu irmão amado. Eu lembro de ter andado com os chinelos de minha mãe, como quem se equilibra em patins no gêlo. Eu lembro de ter amado menos quando pensava em amar e amado mais quando não sabia fazer. Eu lembro da minha vizinha se despedindo quando foi morar definitivamente em outro Estado. Eu lembro do beijo dela ao partir, rápido, assustado, perto dos olhos. Eu lembro de ter ficado triste e comer as palavras que não saíram. Eu lembro de não ter passado o sal na refeição, de não ter voltado cedo para casa sendo noite alta. Eu lembro da missa da igreja, da primeira Eucaristia, do meu casamento com todas as velas, no seu tapete de promessas, onde as mulheres rezavam o terço antes da liturgia ser iniciada. Eu lembro do nascimento de minhas filhas. Eu lembro do meu divórcio. Lembro da viuvez que veio tão rápida depois da separação. Lembro de todas as minhas culpas e traumas. Eu lembro da lã escura dos olhos das ovelhas, do barco descascando na margem, do suspiro da rede arrastando o cansaço dos peixes. Eu lembro do muro branco, do cão castor, do osso jogado na casa abandonada. Eu lembro que eu me demorava nos passeios com minhas amigas. Eu lembro que não tinha pressa de dormir. Eu lembro que os ruídos na cozinha aprofundavam os ouvidos. Eu lembro que o mar me atendeu, apesar do expediente fechado e das cadeiras sobre a mesa. Eu lembro que nadei convencida que a espuma não iria se desfazer. Eu lembro que a derrota é reconstituir os pormenores do que não foi feito. Eu lembro que a consciência pesa quando vigiada ou devida. Eu lembro dos amigos que são tristemente alegres, por que não conseguiram anular uma tristeza. Eu Lembro que endividar o riso permanece como uma cicatriz, uma queimadura que não se apaga com água ou alegrias. Eu lembro do riso como se fosse apenas um entristecer dos dentes. Lembro dos amigos que pensam na tristeza realizando novas coisas. E a tristeza pesa neles nas horas mais impróprias. Uma tristeza assoletrada, sem que se conheça o alfabeto para se confessar. Uma tristeza suave, como uma criança que senta diante da máquina de lavar louça, com os mesmos modos que senta diante de uma televisão. Uma tristeza sem lugar para ir, porque não tem como saber voltar. Uma tristeza calma, alimentada, que se contenta com pouco, que se senta nos degraus da escada e divide os latidos com o cão na quadra no quarteirão. Uma tristeza quase subterrânea, um rádio ligado entre duas estações. Não se mistura, não se guarda. Não se propaga. Podia ser nostalgia, podia ser saudades, nada é de ambas por não se distanciar. Uma tristeza que arruma a cama e não se deita, que digita cartas e não remete a nenhum e-mail. Uma tristeza que é tremor de frio, que parece “maleita.” Um suor fustigante, como uma picada de inseto venenoso no braço, que faz movimentar os ouvidos contra nossa vontade. Uma tristeza tímida, não envergonhada. Uma tristeza sábia, que não é excluída com uma outra tristeza ainda maior que está por vir.
Ah, como lembro dessa tristeza, como tenho lembranças... E lembro por lembrar, porque as recordações já se tornaram dentro mim companhia predileta.
Enfim... Eu lembro que viver nunca será um dever cumprido. Existirá sempre realidades, sonhos não realizados, lembranças boas ou más, para se recordar.

Autor da mensagem: Cáritas Souzza


A verdade nunca é injusta;
pode magoar, mas não deixa ferida.
Autor:   Eduardo Girão
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